O texto abaixo foi extraído da dissertação de mestrado intitulada ” Vozes femininas indianas: tradução comentada dos poemas de Kamala Das e Eunice de Souza, de 2024, por Juliana Paula P.S.Valverde. Caso queiram publicar ou repostar, favor dar o devido crédito.

Apesar de uma vida inteira dedicada à lingua japonesa, meu desejo de escrever sobre a Índia era grande, sobretudo após viver seis anos no país. Sendo assim, em minha dissertação de mestrado, resolvi homenagear este país que tanto amo, apresentando autoras indianas ao público brasileiro. Kamala Das, surpreendentemente, teve um trecho de sua mais famosa poesia inserida em uma questão do Enem de 2018! Porém, é uma autora ainda sem tradução para a língua portuguesa. Em minha dissertação, abordei a obra de Kamala Das e de Eunice de Souza, outra poeta indiana, de origem goesa (daí o nome que nos soa familiar). Muitas das poesias de Eunice de Souza já tinham sido traduzidas para o português por Lorenzetti Neto, diplomata e escritor, apesar de nunca publicadas. Em breve falaremos de Eunice de Souza por aqui, mas hoje, apresento ao público brasileiro, pela primeira vez, a grande escritora indiana Kamala Das e minhas traduções de alguns de seus poemas. A dissertação original estará disponível em breve no banco de teses da Universidade Federal de Santa Catarina. Então, vamos mergulhar no universo de Kamala Das.

Bonecas que perdiam suas cabeças e viviam assim pela eternidade. Este foi o primeiro poema escrito por Kamala Das, ou melhor, Kamala, pois o sobrenome Das passou a fazer parte de sua vida quando sua família arranjou seu casamento com um bancário, aos 15 anos de idade. Os episódios que marcaram seu primeiro e brutal contato físico com o marido, serão analisados no poema traduzido neste artigo, intitulado “A idade da pedra” (The Stone Age).

Kamala nasceu no ano e 1934, em Punnayoorkkulam, região do Malabar, estado do Kerala, cuja cidade hoje é conhecida como Thrissur. Curiosamente, a pequena cidade de Punnayoorkkulam foi berço de outros grandes nomes da literatura indiana, como Punnayoorkkulam V. Bappu (1914-1974), Nalapat Narayana Menon (1887-1954) e Nalapat Balamani Amma (1909-2004), sendo estes dois últimos, respectivamente, tio e mãe de Kamala. A família Nalapat era uma família de renome e tradição na literatura em malayalam, o idioma oficial do estado de Kerala.

Balamani Amma- mãe de Kamala Das
Nalapat Menon, avô de Kamala e grande escritor

A família Nalapat faz parte da casta Nair (ou Nayar), conhecida por sua íntima relação com as letras e artes. Muitos dos membros desta casta atuaram como escribas dos governos dominantes na região por muitos séculos, o que explicaria sua ligação com as letras. Além disso, a prática da dança clássica indiana Kathakali, está diretamente ligada a esta casta, uma vez que era encenada por soldados Nair, envolvendo elementos do Kalaripayattu, uma antiga arte marcial do sul da Índia.

Porém, engana-se quem pensa que a família Nalapat somente apreciava a arte indiana. Durante a infância, Kamala e seu irmão, juntamente com um pequeno grupo de amigos, criaram um grupo de teatro chamado Vannery Children’s Dramatic Society, cujas peças eram encenadas no próprio pátio da casa de Kamala. A primeira peça encenada foi uma adaptação em malayalam de um capítulo do clássico de Victor Hugo, Les Misérables, o qual descrevia a visita de Jean Valjean à casa de Tennardierre para encontrar a pequena órfã Corsette (DAS, 1988, p. 31).

A família de Kamala, assim como os demais Nair, possuíam um espaço em seu pátio dedicado ao culto às serpentes, uma deidade associada a esta casta desde os tempos antigos. Em sua autobiografia, Kamala descreve fatores interessantes dos rituais envolvendo sua casta, os quais mais tarde, nos ajudarão a entender suas inclinações religiosas e a negação de tais inclinações, como aconteceu no final de sua vida.

Outra característica associada às mulheres Nair, é a beleza física acompanhada de seus rituais de beleza e joias. A própria Kamala descreve como sua tia favorita nunca era vista sem os tradicionais apetrechos e joias que compõem uma mulher Nair.

Mulheres da casta Nair, no início do séc. XX.

Minha tia preferida, nunca foi vista à noite sem suas joias pesadas, todas incrustadas e radiantes, e o tradicionais cosméticos das mulheres Nair, o toque de açafrão nas bochechas, a linha de sandália na testa, o colírio no olho e o betel na boca.
(DAS, 1988, p. 21).

Durante sua autobiografia, Kamala explica os costumes de sua casta com um misto de orgulho e repulsa, apresentando sobretudo, uma visão crítica em relação às mulheres de sua família. Sua mãe, Amma Balamani (1909-2004), celebrada escritora em malayalam, ganhadora da 3ª maior honraria civil, o prêmio Padma Bhushan, ela descreve como vaga e indiferente, passando a maior parte do tempo de bruços sobre uma grande cama de dossel, compondo poemas em malayalam (DAS, 1988, p. 4). Kamala comenta que as mulheres Nair tinham fobia a sexo, pois associavam isso a violência e derramamento de sangue (DAS, 1988, p. 23). E em seu depoimento à escritora canadense Merrily Weisbord, a que entrevistou exaustivamente durante mais de uma década, Kamala confessou:

As mulheres da Casa Nalapat, meu lar ancestral, eram todas frígidas, rezando de manhã até a noite. Atravessei as primeiras marés e mergulhei no mar profundo em minha busca além.[1] (WEISBORD, 2010, p.36 tradução nossa).

Se o sexo era um tabu dentro da sociedade na qual Kamala vivia, como ela se tornou a autora lembrada justamente por escrever abertamente sobre este assunto pela primeira vez em seu país? A tal busca além, que Kamala cita, talvez seja a forma que ela encontrou de ir contra o seu próprio destino, o destino traçado para cada moça da casta Nair, as quais costumavam ser dadas em casamento assim que entravam na puberdade. Também era costume o marido, que geralmente era bem mais velho, dar-lhe um ríspido susto na noite de núpcias, devido a sua ânsia sexual. Com Kamala, não foi diferente. Aos quinze anos, ainda em idade escolar, seu pai decidira que ela deveria se casar. Como padrão vigente ainda hoje na Índia, os casamentos são arranjados pelas famílias e muitas vezes, os noivos nem tomam conhecimento da negociação até os pais anunciarem que devem se casar.

Certo dia, um parente de Kamala veio visitá-los, vindo de Mumbai. Ele trabalhava no Reserve Bank of India, mas contribuía para a revista editada por Kamala e seu irmão, enviando alguns contos e poemas. Ele era culto e discutia vários assuntos com Kamala, incluindo homossexualidade. Naquela mesma noite, a avó de Kamala virou-se para ela e disse que ela deveria casar-se com o Sr. Das. Este era o sobrenome do parente que viera visitá-los.

Kamala na época de seu casamento com Madhav Das

Apesar de no futuro ter sido consagrada pelos poemas cuja sensualidade e franqueza eram a marca registrada, a jovem Kamala, preste a se tornar Kamala Das, não sabia ainda ao certo o que o desejo sexual significava. Entretanto, ela sabia que não havia como escapar deste casamento e que seu destino, de se tornar a vítima da fome carnal de um jovem, mãe de alguns filhos, dona de casa de classe média indo à mercearia com suas sandálias desbotadas e que lavaria as cuecas sujas e baratas do marido e então, as penduraria no varal, como se fossem uma bandeira nacional (DAS, 1988, p. 68).

No dia da pomposa festa de casamento, seu ex-primo e agora já esposo, levou-a até o quarto onde estavam os presentes dados aos nubentes. Kamala senta na cama para retirar seu pesado saree com bordas de ouro e neste instante, o Sr. Das, primo e esposo, se joga em cima dela, surpreendendo-a com a brutalidade do ataque (DAS, 1988, p. 71). Tal cena de brutalidade é descrita em detalhes por Kamala em sua autobiografia:

O estupro não teve sucesso, mas ele me confortou quando expressei meu medo de que talvez não estivesse preparada para a relação sexual. Talvez eu não seja normal, talvez eu seja apenas um hermafrodita, eu disse, e com pena ele me abraçou e disse, mesmo que assim seja, seremos felizes vivendo juntos… De novo e de novo durante aquela noite infeliz, ele me machucou e (….) Permaneci virgem por quase quinze dias depois do meu casamento. Ele se cansou da resistência física que nada tinha a ver com minhas inclinações.(DAS, 1988, p. 71-72).

Mais uma vez, nos vemos diante do flagelo do estupro conjugal, o qual até o momento, ainda está em discussão na Índia, dividindo opiniões. Não passou muito tempo e Kamala engravidou de seu primeiro filho, fato que trouxe grande alegria à sua vida, mas a distanciou ainda mais do marido, uma vez que ele não suportava o choro da criança e gritava, mandando que ela fosse com a criança para outro quarto pois ele queria dormir. Nesta época, Kamala tinha ido para a casa de sua família em Malabar e ele estava lá de visita. Porém, praticamente não havia diálogo entre os dois, uma vez que ele só queria conversar sobre sexo e este, definitivamente não era o assunto no qual Kamala era especialista ou estava interessada. Sendo assim, aos poucos, Kamala foi percebendo que seu esposo só se casou com ela por sua posição social e pela possibilidade de obter vantagens financeiras. Gradativamente, Kamala foi despertando daquele momento de hibernação e começou a buscar sua identidade, a qual era perdera naquela brutal noite de núpcias.

E o divórcio? Será que Kamala nunca pensou em largar o marido e começar uma nova vida com seu filho? Esta seria uma indagação comum no Ocidente, mas como estamos analisando a sociedade indiana, devemos ter em mente que casamentos arranjados são comuns e bem aceitos, mas não os divórcios. Em sua autobiografia, Kamala diz que não poderia aceitar que seu casamento era um fracasso, não poderia simplesmente voltar para a casa Nalapat e dizer que tudo acabou, uma vez que outras alianças já haviam sido feitas anteriormente entre a família dela e do Sr. Das. Seus pais, como a maioria dos pais indianos, eram obcecados pela opinião alheia e caso ela se divorciasse, seria “desagradável e tão horripilante quanto um ataque de lepra” (DAS, 1988, p. 82). Além disso, pensando de maneira prática, Kamala também não possuía nenhuma qualificação para conseguir um emprego e, com um filho pequeno, dificilmente alguém aceitaria se casar com ela.  

Para completar, o Sr. Das, possuía um amigo de longa data, com o qual parecia possuir bastante intimidade e, no aniversário de Kamala, os dois simplesmente a expulsaram do quarto do casal e se trancaram lá dentro. Por alguns instantes, Kamala ficou imaginando o que dois homens poderiam fazer trancados dentro de um quarto. Mas, quando entendeu o que estava acontecendo, ela se retirou e foi deitar-se perto de seu filho. A repulsa sentida por Kamala é mencionada em sua autobiografia:

Fui para onde meu filho estava e deitei-me perto dele. Senti, então, uma repulsa pela minha feminilidade.O peso dos meus seios parecia me esmagar. Minhas partes íntimas eram apenas uma ferida, a ferida da alma aparecendo. Por que você está chorando, Amma? -perguntou meu filhinho e eu balancei a cabeça dizendo: Nada, nada. (DAS, 1988, p. 83 tradução nossa).

Todos estes acontecimentos culminaram em um surto, com Kamala se desfazendo de suas roupas, as quais ela considerava trapos e pintando demônios acasalando com serpentes. Nesta época, um psiquiatra veio vê-la. Leu seus poemas, observou suas pinturas, a examinou, prescreveu um calmante e foi embora. Passada esta fase complicada, Kamala escrevia compulsivamente, geralmente após os filhos dormirem. Ela escrevia dois contos por semana e enviava para a revista Mathrubhumi, que os publicava e pagava a ela a quantia de 12 rúpias por narrativa (DAS, 1988, p. 110).


Com sua saúde deteriorada e o convívio com o insaciável apetite sexual do marido, Kamala se sentia destruída, mas saber que suas poesias e artigos estavam sendo lidas pelo grande público a deixava satisfeita, embora ela sinta que acabara pintando uma imagem de si própria que não condizia com a realidade (DAS, 1988, p.154).

Como consequência de escrever abertamente sobre experiências sexuais e sobre o corpo feminino, ela começou a ser considerada uma ninfomaníaca, despertando o desejo dos homens, recebendo telefonemas de alguns deles se insinuando e sugerindo ter sexo com ela, além de alguns conhecidos que tentaram se aproveitar dela, tocando seu corpo e sugerindo coisas indiscretas.  sua atitiude reprovando tais comportamentos, trouxe relatiação à sua moral e à sua carreira:

Quando mostrei meu desgosto pelo comportamento deles, eles se tornaram meus críticos mais ferrenhos e começaram a espalhar escândalos sobre mim. Se eu fosse mesmo promíscua, eu não teria ganho o ódio e o notoriedade que minha indiferença ao sexo me trouxe (DAS, 1988, p.154).

Tendo publicado mais de 25 livros e coletâneas de poesia, a natureza de sua escrita releva uma mulher que não tinha medo da se expressar e cuja postura progressista em relação à sua sexualidade, estava à frente do seu tempo. Sua escrita foi comparada a autoras como Sylvia Plath and Anne Sexton. Em 1984, foi convidada para o Festival de Escritos em Adelaide e, em 1994, recitou sua poesia em três universidades na Alemanha. Além destes feitos, também foi convidada a recitar poesia na Jamaica, Singapura e Inglaterra.

Após o falecimento de Madhav Das, seu marido e carrasco, Kamala viu-se livre de seu opressor, mas isto parece ter-lhe causado insegurança. Talvez a insegurança venha do fardo imposto às viúvas hindus, sobre o qual Kamala comenta em forma de poesia: Elas são sem brilho, como uma cotovia. Elas não podem voar e arrastam suas asas na lama[1]. Após décadas de celibato, carregando o corpo como se fosse um cadáver ambulante e aceitando o estado permanente de solidão ao qual parecia destinada (WEISBORD, 2010, p.144), eis que um novo destino começa a ser traçado para Kamala.

continua……


[1] “They’re lacklustre, like a mudlark. They can’t fly. They drag their wings in the mud.” (tradução nossa)


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