Após termos dois posts dedicados à Kamala Das e sua biografia, finalmente chegou a hora de conhecermos a obra desta icônica autora indiana.
Como expliquei anteriormente, Kamala Das, com sua poesia confessional, foi a primeira autora indiana a tratar tão diretamente de assuntos considerados tabus, como fidelidade, prazer feminino, desejo, etc.

Sem mais delongas, vamos conhecer a forte poesia de Kamala Das. Se você caiu de pára-quedas aqui, sugiro que volte duas casas e leia os dois posts que publicamos sobre a autora para poderem entender melhor sua vida e obra e assim, disfrutar melhor da leitura dos poemas.
Aviso também, que os poemas abaixo são inéditos em língua portuguesa e foram todos traduzidos por mim. Portanto, caso queiram usá-los em algum local, favor dar o devido crédito. Vamos valorizar o trabalho dos tradutores. No mais, disfrutem a poesia de Kamala Das.
| Apresentação (Verão em Calcutá, 1965) Eu não conheço política, mas conheço os nomes Daqueles no poder e posso repeti-los como os Dias da semana ou os nomes dos meses, começando por Nehru. Sou Indiana, bem marrom, nascida em Malabar, Falo três línguas, escrevo em Duas, sonho em uma. Não escreva em inglês, disseram eles, inglês não É sua língua-materna. Por que não me deixam Sozinha, críticos, amigos, primos visitantes, Cada um de vocês? Por que não me deixam falar em Qualquer língua que eu goste? A língua que eu falar, Se torna minha, suas distorções, suas esquisitices Todas minhas, tão minhas. É meio inglês, meio indiano, engraçada talvez, mas é honesta, E é tão humana como eu sou humana, não Percebe? Ela vocaliza minhas alegrias, meus anseios, minhas Esperanças, e é útil para mim como o grasnar É para os corvos ou o rugir para os leões, é o discurso humano,discurso da mente que Aqui está e não lá, uma mente que vê, ouve e É consciente. Não o discurso surdo ou cego De árvores na tempestade ou de nuvens das monções ou da chuva ou dos Incoerentes murmúrios da pira funerária em chamas. Eu era uma criança, e depois eles Me disseram que eu cresci, pois fiquei alta, meus membros Incharam e em um ou dois lugares brotou pêlo. Quando pedi por amor, não sabendo o que mais pedir Ele atraiu uma jovem de dezesseis anos para o quarto e fechou a porta. Ele não me bateu, Mas meu infeliz corpo-de-mulher sentiu-se tão açoitado. Pelo peso dos meus seios e útero dilacerada fui Eu encolhi de forma deplorável. Então….vesti uma camisa e as Calças do meu irmão, cortei meu cabelo e ignorei Minha feminilidade. Vista-se com saris, seja feminina, Seja uma esposa, eles disseram. Uma bordadeira, uma cozinheira. Seja brigona com os empregados. Ajuste-se. Ah, pertença!- clamaram os categorizadores. Não sente-se nos muros ou espreite através de nossas janelas com cortinas de renda. Seja Amy ou seja Kamala. Ou melhor Ainda, seja Madhavikutty. É hora de Escolher um nome, um papel. Não brinque de faz de conta. Não brinque com a esquizofrenia nem seja uma Ninfo. Não chore embaraçosamente alto Quando Rejeitada no amor….Encontrei um homem e o amei. O chamo não por qualquer nome. Ele é todo homem que deseja uma mulher, assim como eu sou toda mulher que busca amor. Nele….a pressa faminta De rios, em mim… a incansável espera do oceano. Quem é você, eu pergunto a cada um A resposta é…sou Eu. Qualquer lugar e, Todo lugar, eu vejo aquele que se chama de Eu Neste mundo, ele está bem guardado Como a espada na bainha. Sou Eu quem bebe solitária Bebidas ao meio-dia, à meia-noite, em hotéis de cidades desconhecidas, Sou Eu quem ri e quem faz amor e então, sinto vergonha, sou Eu quem está morrendo com um guizo na garganta. Sou pecadora, Santa sou. Sou a amada e a Traída. Não tenho alegrias que não sejam suas, Nem Dores que não sejam suas. Eu também me chamo Eu. |
| A Idade da Pedra De “A antiga casa de bonecas e outros poemas” (1973) Querido marido, antigo colono na mente Aranha gorda e velha, tecendo teias de confusão, Seja gentil. Você me transforma em um pássaro de pedra, uma pomba de granito, Você constrói uma sala depenada ao meu redor E afaga meu rosto esburacado distraidamente enquanto Você lê. Falando alto, você fere meu sono pré-matinal, Você enfia um dedo no meu olho sonhador. E, Ainda em devaneios, homens fortes protegem suas sombras, eles afundam Como sóis brancos no inchaço do meu sangue dravidiano Secretamente fluem as valas sob as cidades sagradas. Quando você parte, dirijo o meu carro azul batido Ao longo do mar mais azul. Eu corro os quarenta Passos barulhentos para bater na porta de um alguém Pelo olho mágico, os vizinhos observam Eles me veem chegar e E partir como a chuva. Me perguntem todos, me perguntem O que ele vê em mim, me perguntem porque ele é chamado de leão Um libertino, pergunte-me o gosto de sua Boca, pergunte porque sua mão balança como uma cobra naja Antes que ela se enrosque em meu púbis. Pergunte-me porque ele, como uma grande árvore, derrubada, tomba contra meus seios E dorme. Pergunte-me porque a vida é curta e o amor é ainda mais, me pergunte o que é alegria e qual seu preço… |
| Um lamento feminista Extraído de “Somente a alma sabe como cantar” (1996) Uma mulher ideal, disseram eles, era apenas uma masoquista. Treinada desde a infância a vestir as calças da covardia junto a sua pele, treinada pra ficar inerte sob um homem, comprometido pelos votos de alimentá-la, vesti-la e comprar-lhe um apartamento de 90 e poucos metros quadrados com um sótão para guardar os destroços dos anos que passam Eu nunca fui aquele sonho ideal. Nem ele comprou um apartamento para mim. Viúva e diabética Enrugando como uma berinjela nem a morte pode me aperfeiçoar agora De que valeu a pena a coragem no final? Se até Phoolan[1], a rainha bandida, Finalmente baixou as armas para se contentar com orgasmos semanais [1] Phoolan Devi (1963-2001), mais conhecida como Bandit Queen, foi uma mulher foi forçada a casar-se aos onze anos e posteriormente estuprada por vários homens. Como vingança, entrou para uma gangue de bandidos em Uttar Pradesh e conseguiu punir seus estupradores. Phoola é vista como heroína por muitos indianos, sobretudo os de casta baixa como ela. Posteriormente , entrou para a política e foi assassinada em 2001, em Nova Déli. |
| O Gato do Raio de Sol “de Verão em Calcutá” (1965) Eles fizeram isso com ela, os homens que a conheciam, o homem que Ela amava, que não a amou o suficiente, sendo egoísta E um covarde, o marido que nem a amou nem a Usou, mas era um observador implacável, e o bando De cínicos para os quais ela se voltou, agarrando- se aos peitos deles onde Novos pêlos brotavam como mariposas de asas grandes, cavando sua Face em seus cheiros e luxúrias para esquecer, Esquecer, ah, esquecer…e, assim eles disseram, Cada um deles, Eu não amo, não consigo amar, não está Em minha natureza o amar, mas eu posso ser gentil com você… Eles a deixaram deslizar das estacas de sanidade para Uma cama amaciada com lágrimas e lá ela se deita, chorando, Como o sono perdeu seu uso, construirei muros com lágrimas, Disse ela, muros que me tranquem…Seu marido a trancava Todas as manhãs, em um quarto de livros Com um raio de sol repousado próximo à porta, como Um gato amarelo, para fazer-lhe companhia, mas logo, o Inverno chegou e um dia enquanto a trancava lá, ele Percebeu que o gato do raio de sol era apenas uma Linha, como um fio de cabelo, e ao anoitecer, quando Ele voltava para tirá-la de lá, ela era uma mulher fria e Metade cadáver, agora, sem utilidade alguma para os homens. |
| Nani de “A Antiga Casa de Bonecas e outros poemas” (1973) Nani, a empregada grávida, se enforcou na latrina um dia. Por três longas horas Até a polícia chegar, lá ela ficou, pendurada, marionete desastrada, quando o vento soprou Virando-a gentilmente na corda, parecia Para nós, que éramos crianças ainda, que Nani Estava fazendo, para nos divertir, uma dança cômica. Os arbustos cresceram rápido. Antes do fim do verão As flores amarelas haviam abraçado a porta e as paredes. A latrina, tão abandonada, Tornou-se, então, um santuário ensolarado Para uma deusa que estava morta. Um ou dois anos depois, perguntei a minha avó Um dia, você não lembra da Nani, aquela Escura gorducha que me banhava perto do poço? Vovó Deslocou os óculos de leitura sobre seu nariz, E olhou para mim. Nani, quem é essa?- perguntou ela. Com aquela pergunta, Nani chegou ao fim. Toda verdade termina assim com uma pergunta. É esta Surdez projetada que torna a mortalidade em Imortalidade, o definido em suave indefinido. Eles têm sorte. Aqueles que questionam e partem antes que As respostas cheguem, aqueles espertos que moram Em uma zona silenciosa azul, sem serem arranhados pelas dúvidas Pois deles é a paz densa enraizada Na vida, como música no ovo de um cuco Como a luxúria no sangue ou como a seiva em uma árvore… |
| Mulheres sem a sombra dela de “Kamalas Das- Poemas selecionados” Ela deita imóvel, seus olhos abertos, duas rodas de carroça Atordoadas por uma parada repentina. Parecia-lhe Às vezes, que os anos tinham acelerado desde que tinha Enviado sua sombra para ele que precisava dela, embora ela fosse mais velha, e doente. Um dia, finalmente, a sombra voltou e levantando-se de seu travesseiro, ela chorou, Você mudou, eu não teria te reconhecido se tivesse Te encontrado fora de casa. Você está escura, torrada, como se algum fogo do inferno por um momento tivesse te agarrado até o seu âmago. A sombra respondeu Sorrindo, Eu estava ocupada, não tinha tempo Pra respirar, andei pelas ruas ao anoitecer, Segurando as mãos dele nas minhas, bebi café Em um café do sul da Índia, onde cada garçom que nos serviu parecia mais um Jiddoo Krishnamurty[1], e deitava sobre ele Pelas noites de inverno, como uma bandeira hasteada Em uma cordilheira até então não reivindicada Não foi vista minha face contra a dele, E meu coração contra o seu, sim, eu o mantive Sua por um feitiço e agora eu volto, Anseiando por um lar e descanso. Planetas deslizaram como dados nas mãos dos jogadores, lançados no espaço; O silêncio deles estourou em seus ouvidos. Ela desceu correndo As temíveis escadas do mar. Como Um oeste selvagem de repente em liberdade Ela se movia com uma facilidade terrível e Na samambaia mofada do céu, a bruxa Azaléias floresciam para ela E os pássaros sem nome de cada paraís Explodiam em uma canção, não havia disputas Sua força ou seu papel legítimo Mas, de uma outra cidade, mais solitária, Que a dela, ele gemeu no sono da tarde Sonhando mais uma vez com o dia que ela morreria [1] Jiddu Krishnamurti (1895-1986) – Importante filósofo e palestrante indiano. A transcrição de seu nome em alfabeto romano pode variar. |
E então? Gostaram da poesia de Kamala Das? Se sim, podemos trazer mais poemas dela no futuro. Em breve, traremos outras autoras asiáticas para o público brasileiro.
Leave a comment