
Apesar de seu nome soar bastante familiar para os falantes de língua portuguesa, Eunice de Souza nasceu na cidade de Pune, em 1940, filha de pais católicos originários de Goa. Goa, mesmo sendo o menor estado indiano, foi o que recebeu a maior influência portuguesa e onde há um relevante número de indianos católicos. Aos três anos, sua vida é impactada para sempre. Seu pai, que era funcionário público do Indian Revenue Service (IRS)[1], sendo alocado em regiões inóspitas na época como Chhatisgarh. Ele e mais dois colegas foram acometidos por uma doença chamada febre da água negra, uma forma letal da malária e, acabaram indo à óbito. Ele tinha apenas 33 anos na época. Segundo Eunice, seu pai também escrevia e era um leitor ávido, fato que ela só descobriu depois de arrumar as coisas dele anos depois, quando descobriu um caderno com contos e poemas, além de livros de pintura. Devido à pouca convivência com o pai, o tal caderno se tornou o elo entre ela e seu progenitor. Em relação a memória do pai, Eunice comentou o seguinte em uma entrevista:
Nunca falávamos dele, nunca perguntei nada. Foi como se o inventasse. Ele não me parece muito real, tenho muita dificuldade ainda hoje em falar dele. É quase embaraçoso, tenho que me forçar. Tenho a memória de alguém que me costumava sentar nos joelhos, me levava a passear de elefante, e eu não sabia quem era, só que não era nenhum dos meus tios. (SOUZA, 2001).
Em entrevista à pesquisadora Anjali Nerlekar[1], Eunice confessou que levou muitos anos para superar a morte do pai e que ela se considerava uma má pessoa. Não uma má mulher, mas uma má pessoa, pois ele partiu e ela nem viu como e nem entendeu o porquê. E, como era uma criança, ela simplesmente se culpou pela partida prematura do pai.
Entretanto, em relação à mãe, ela deixou claro em sua poesia a complexa convivência das duas. Segundo Eunice (2001), era um misto de medo pois sua mãe era muito severa, mas também um sentimento de proteção. Desde muito cedo, ela desenvolveu uma visão crítica em relação às mulheres, sobretudo às de sua família.
“A maior parte das mulheres que conheço são muito mais fortes que os homens, mais maduras, mais pacientes. Os homens são tão mimados desde jovens que se tornam infantis. As mulheres obedecem-lhes e ouvem-nos, mas da mesma forma que lidariam com uma criança. E quando se tornam viúvas, florescem, tornam-se mais alegres, são livres. Vi isso na minha família, mulheres deprimidas durante anos que, quando os maridos morrem, se tornam felizes. (DE SOUZA, 2001).”
Talvez por esta razão, Eunice nunca tenha se casado e viveu por longos anos em Mumbai, no bairro de Santa Cruz, junto a seu papagaio Toto e seu cachorro Doggy, para quem até escreveu um poema.

Seu primeiro contato com a arte foi ainda na infância, através de um artista goense, chamado Angelo Da Fonseca, que costumava pintar Jesus, Maria e José em roupas indianas tradicionais. Ele costumava levar a pequena Eunice à feira local e mostrava-lhe objetos como o Nataraj [3] de bronze, algo raro para uma criança criada em uma família católica goesa (NERLEKAR, 2017). Foi nesta época que Eunice deve ter desenvolvido a personalidade “híbrida” pela qual ela seria conhecia. Indiana, católica, goense e mulher, mas sempre questionadora sobre os costumes de sua comunidade e da forma como as mulheres eram tratadas.

Durante uma entrevista a um jornal português, quando perguntada se era feminista, Eunice apenas respondeu: Eu não conhecia a palavra feminismo. Só sentia fúria. As mulheres não tinham controle sobre a natalidade, casavam muito cedo, como a minha avó, com 14 anos, esperava-se delas que tivessem muitos filhos. Foi só com vinte e tal anos que percebi que muitos dos meus poemas eram de alguma forma feministas (SOUZA, 2001).
Seu estilo de vida não convencional para a sociedade indiana, sobretudo para sua tradicional comunidade, a permitiu viver experiências as quais eram raras para a maioria das jovens indianas de seu tempo. A própria Kamala Das, grande poetisa indiana, só pode continuar escrevendo porque o marido assim o permitiu e, com a condição de que isso fosse feito sem atrapalhar seus afazeres domésticos e o cuidado com os filhos. Após terminar os estudos na faculdade, muitos foram contra o fato de Eunice se desejar se aprofundar no estudo da língua inglesa. Sendo assim, a única opção seria sair daquele círculo e, assim, Eunice foi para os Estados Unidos fazer mestrado na Universidade de Marquette, uma universidade católica localizada em Wisconsin, onde foi contemplada com uma bolsa de estudos. Já nos Estados Unidos, Eunice ficou morando com uma família americana que apreciava arte e a qual Eunice diz tê-la apresentado a todos os tipos de artes, além de costumarem levá-la à Chicago para ver exposições (NERLEKAR, 2017).

Este contato com os mais diversos tipos de artes foi fundamental na formação de Eunice, pois ela se tornou uma escritora bastante versátil, produzindo prosa, poesia, crítica literária e escrevendo frequentemente para o Mumbai Mirror, jornal de circulação na cidade de Mumbai.
Diferente de Kamala Das, que começou escrevendo poesia e prova ainda na infância, a os primeiros versos de Eunice foram escritos já próximo dos 30 anos.
Acho que eu tinha quase trinta e estava doente. Por isso, os poemas sejam tão preconceituosos. Mas eu estava na casa da minha tia, em Mumbai e ouvi-la dizendo algo: o noivado foi cancelado porque descobriam que ele não era um brâmane. E isso, repentinamente, despertou todos os poemas de cunho católico sobre minha comunidade, sobe coisas que estavam fervendo há muitos anos. Não havia estética pensada. Escrevi os poemas à medida que surgiam. Olhei mais tarde para eles e, simplesmente os deixei como estavam. (DE SOUZA, 2001, tradução nossa).[4]
Além de escritora, sua principal profissão era a de professora de língua e literatura inglesa na tradicional St. Xavier University, em Mumbai, onde permaneceu de 1969 até o ano de 2000. Além das aulas, ela costumava organizar um ciclo de leitura de poemas junto com Melanie Silgardo (1956-), consagrada poetisa indiana, que na época, era sua aluna. Estes encontros aconteciam no refeitório da própria universidade e incluía poetas já reconhecidos, além de poetas em início de carreira.
Uma das características de sua escrita, é transformar conversações da vida real em poesia, algo que ela aprendeu lendo Robert Browning (1812-1889) e influenciou sua escrita. Em relação às críticas sobre sua poesia confessional e o fato limitante de ser uma escritora, ela comenta o seguinte:
A maioria das pessoas não pensa assim ao meu respeito. Mas há algumas pessoas que pregam isso e não só sobre mim, sobre Kamala Das também. “Escrever sobre o eu é limitante” – bem, em nosso contexto não é; é libertador para Kamala Das escrever como ela escreve, mas aí você tem essas pessoas (estes palhaços das antigas) que dizem coisas do tipo: “ T.S. Elliot disse que a poesia tem que ser impessoal”. Veja, nós estamos em um local diferente, numa época diferente e em uma sociedade diferente. O que T.S. Elliot diz não nos diz respeito. (NERLEKAR, 2017, p.251 tradução nossa)
Os poemas de Eunice tratando desta questão de castas dentro da sua comunidade católica goense, estão dentre as obras selecionadas para tradução neste trabalho.
Os poemas de Eunice com tradução para o português serão apresentados no próximo post.
Este artigo faz parte da dissertação de mestrado de Juliana Valverde, intitulada Vozes Femininas Indianas: tradução comentada de poemas selecionados de Kamala Das e Eunice de Souza e se encontra disponível para consulta no banco de teses da Universidade Federal de Santa Catarina- Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução.
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[1] Indian Revenue Service- O equivalente no Brasil a Receita Federal.
[2]Anjali Nerlekar- Professora adjunta do Departamento de Línguas e Literaturas do Sul da Ásia, Oriente Médio e África – Rutgers University.
[3]Nataraj – Um dos avatares do deus Shiva como dançarino. Na Grande Noite de Shiva (Mahashivatri), Shiva abaixa seu tridente e exibe uma dança extática, chamada Nataraja. Tal dança representa o despertar do conhecimento e a destruição da ignorância espiritual.
[4] “Most people don’t think of me in that way. But there are a couple of people who pontificate, and not about just me, Kamala Das also. “Writing about the self is limiting” – well, in our context it isn’t; it’s liberation for Kamala Das to write as she does, but then you have these people (these ancient bozos) who say things like “T.S. Eliot said that poetry has to be impersonal”. I mean come on, we’re in a different place, a different time, a different society. What T.S. Eliot says doesn’t necessarily concern us.”
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